dezembro 16, 2008

1º Lugar Mini Conto - Contratempo

O automóvel foi percorrendo os caminhos que levam ao alto da montanha. O ruído incessante e monótono do motor se fazia ouvir. O motorista, tentou entabular uma conversa, especulando sobre de onde ela vinha, se já havia estado na cidade, se conhecia esse ou aquele ponto. Falou do atual prefeito – as coisas que todos os moradores de uma cidade pequena (e não só as pequenas) dizem da política, dos políticos e etc. Acabou cansando e ficou calado. Desistiu. Deve ter percebido que ela não queria conversar. Ela suspirou, aliviada. Não entendia a necessidade que algumas pessoas têm, de falar o tempo todo. Concentrou-se no itinerário. Tudo tão diferente do que se lembrava. E ao mesmo tempo, tão igual! Teria preferido vir de trem. Mas o trem “não corria mais por aquelas bandas”, lhe informou o funcionário, com aquele sotaque tão familiar. Uma pena. Algumas coisas estavam bem diferentes: os estabelecimentos comerciais estavam muito mudados; parecia uma paródia de alguma metrópole, inclusive nos nomes : “Stop By Drugstore”; “Pet Shop Dogs”; “Golden Shopping Center”... Teve vontade de rir. Que mania das pessoas em serem o que não são! Tanto trabalho para tentar serem iguais, quando o que têm de melhor é justamente o que é peculiar, próprio, característico de cada um. “Vou descer aqui”, ouviu-se dizer ao condutor. Combinou com o homem. Ele ficaria esperando, no carro. Não ia demorar. Saiu andando, pela rua calçada de pedras. O tempo pareceu parar. Lembrou-se dos risos, das vozes, dos cheiros... Parecia estar assistindo a um filme, já visto. Foi caminhando, devagar, para não tropeçar. Tinha esquecido como as pedras eram irregulares (ou seriam seus pés, agora tão pouco afeitos às diferenças?). Chegou ao final da rua, que acabava no casarão. Prendeu a respiração ao olhar para a velha casa. Seu coração acelerou. Estava um pouco mudada. O novo dono tinha feito algumas benfeitorias. Mas havia alguma coisa naquela casa que permanecia. Era uma casa com espírito. Credo! Só faltava essa! Ela, uma mulher vivida, instruída; que conhecia tantos lugares, tantas culturas diferentes, ia começar agora a acreditar nas velhas histórias, que os primos gostavam de contar! Contavam e depois se encolhiam de medo, perplexos, diante da própria imaginação! Nada mais assustador que os fantasmas inventados! Balançou a cabeça, como que para afastar tais pensamentos. Havia fantasmas muito mais poderosos, que sabiam muito bem como assombrar, pois moram dentro de cada um, não importa que se esteja do outro lado do mundo, ou que já tenham se passado décadas. Olhou a casa, novamente. O novo dono tinha mantido o caramanchão do avô. Estava tudo muito bem cuidado, a casa estava viva. De alguma forma, seu avô continuava ali, em sua obra. Conseguiu enxergar, nos fundos do terreno, o pomar que tinha sido cultivado com tanto carinho, onde vivia correndo, na infância, se escondendo dos primos, nas brincadeiras. Nesses anos todos que passaram, viveu muitas coisas. Conheceu muitos lugares, muitas pessoas diferentes. Nunca mais tinha voltado à cidade. Por várias vezes, desistiu na última hora. Tinha receio de despertar sensações antigas, de evocar velhas recordações. Agora estava ali. Respirou fundo, sentindo o perfume das flores, do jardim. De repente, não estava mais só. Uma menininha tinha chegado perto do portão e estava olhando para ela, curiosa. “Que bom que você veio!”, disse a garotinha. Deu-se conta, de repente, de que era uma mulher pouco afeita ao contato com crianças, uma vez que não havia nenhuma, em seu próprio círculo de relacionamentos. No entanto, se sentiu fascinada. Não conseguia tirar os olhos da menina, que lhe parecia ineditamente familiar. “Veja, o pé de manacá está todo florido! Peguei um ramo para você!” Sempre gostei dessas flores, disse a ela. A menina riu, um riso que já tinha visto antes, mas onde, meu Deus? Pegou o ramo de flores que ela lhe estendia, através das grades. Olhando as flores, sentiu uma brisa, totalmente inesperada, fresca, perfumada. Não importava se havia dor, desde que se pudesse ter vivido, rido, chorado. Tudo fazia parte de sua história. E isso nunca iria passar. O que se vive é para sempre, ainda que acabe, um dia. Levantou os olhos, marejados, para agradecer à sua pequena mestra. Mas, a garotinha havia desaparecido. Subitamente, percebeu porque a menina lhe parecera tão familiar! A garotinha era ela mesma, há muitos anos atrás! Entendeu então o porquê de ter vindo, de tão longe, depois de tanto tempo. Precisava fechar o ciclo, se libertar, para poder seguir seu caminho. Tinha, finalmente, emendado as pontas do passado, com o presente. Era, afinal, o contratempo – aquele passo do balé, em que parece que se vai recuar, mas que na verdade, faz ir adiante. Não havia mais sofrimento, apenas um enorme alívio. Estava livre! Estava viva, como há muito não se sentia! Chegara despedaçada, endurecida e saía dali, magicamente revigorada. Saiu andando, refazendo o caminho que a levaria para o táxi, que a esperava.

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